Crónicas das nossas letras

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O poeta vila-realense Manuel Duarte de Almeida (1844-1914), já o fizemos notar por mais de uma vez, é um bom exemplo do escritor que o tempo triturou. Foi na sua época festejadíssimo, não só pelo público culto, como pela imprensa de âmbito nacional, como por companheiros de letras que o mesmo tempo, contrariamente ao que fez com ele, poupou: João de Deus, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, por exemplo. Recordo aqui alguns adjectivos que se escreveram a propósito dele: adorado, único, glorioso, incomparável, genial, divino, primacial, inimitável, culminantíssimo. Caramba! Nem um segundo Camões! Vale o facto de Manuel Duarte de Almeida ter sido, a par de uma bela estampa de homem, criatura de uma modéstia total e absoluta, quase comovente. Quando não, corria o risco de lhe acontecer o mesmo que à rã da fábula: inchar, inchar, inchar – e rebentar.
E todavia, quem o recorda hoje, a não ser num contexto de estudo da escola parnasiana portuguesa? Poderemos dizer que ainda está vivo como poeta? Lêem-se as suas obras e reconhece-se uma oficina honesta, uma tal ou qual suavidade e gentileza de expressão, uma sensibilidade apurada e por vezes magoada. Mas isso não basta. Percebe-se que o tempo erodiu aqueles versos, comeu-lhes o melhor e regurgita-os embrulhados em bafio. Em suma, os seus poemas não resistiram ao tempo.
Caso único? De forma nenhuma. O nosso poeta não está desacompanhado nesta situação de vítima dos volúveis juízos do tempo. Tomás Ribeiro. Quem lê hoje Tomás Ribeiro? Bulhão Pato. Quem conhece de cor o título de um livro de Bulhão Pato? Fausto Guedes Teixeira. Quem sabe onde repousam os ossos de Fausto Guedes Teixeira?
Os exemplos são aos magotes. E muitas vezes – requinte de crueldade – o bicho do olvido nem espera pela morte do poeta e entra a roer a sua aura ainda em vida.
Não vale a pena a ninguém embandeirar em arco só porque a crítica do seu tempo o incensou. Pode muito bem calhar que amanhã o seu nome esteja no limbo dos esquecidos e os seus livros cobertos de pó no depósito morto das bibliotecas. A grande pedra de toque da qualidade duma obra não é o juízo dos contemporâneos, mas o do tempo, que tudo faz sedimentar e depois traz ao de cima apenas aquilo que tem a marca da perenidade. O resto fica lá pelos fundos. Pode excitar uma curiosidade aqui e ali, justificar um busto na terra que lhe foi berço ou servir para teses de mestrandos que não acharam nada melhor (ou mais fácil) para estudar. Mas dificilmente pode ser ressuscitado enquanto material literário vivo.
Sirva Manuel Duarte de Almeida de memento a uns quantos que andam por aí cheios de empáfia e convencidos de que, quando morrerem, deixam viúva a literatura portuguesa.

A. M. Pires Cabral

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Lotelim é alcunha dos tempos de estudante transformada em pseudónimo do Dr. Joaquim de Azevedo, advogado de que pouco mais sei do que o facto de ter nascido no concelho de Vila Real – e de ter publicado em 1940 um livro intitulado Naquele tempo… (Recordações da mocidade), de que o Grémio Literário Vila-Realense acaba de publicar uma edição fac-similada.
O livro faz jus a uma capacidade inata dos vila-realenses para a pilhéria, a resposta pronta e – aparentada com estas e fechando-as como uma cúpula grandiosa – a alcunha certeira. Já Pina de Morais, numa crónica esquecida, celebrava nos vila-realenses esta balda das alcunhas.
Naquele tempo… é assim uma emanação deste espírito, assim como o são os chamados Garotos da Bila – designação de forma alguma insultuosa, antes assumida com galhardia pelos ditos garotos, um grupo de pessoas que sobressaía do trivial pelo seu sentido crítico, pela sua boa disposição inata, pela sua irreverência.
O livro reporta-se às primeiras décadas do séc. XX e é no fundo uma colecção de contarelos verídicos (ou, vá lá, quase verídicos, que nestas coisas há sempre uma tendência para acrescentar o dito ponto ao conto que se conta) cujas personagens são figuras da boémia vila-realense dessa época. Tudo gente que percorre as tascas (ou “capelas”, ou ainda “ermidas”, na sua linguagem típica e com o seu quê de sacrílega), onde papa ceias de cabrito com pimentos e emborca copadas de vinho ou de genebra, e que deixou de si uma memória picaresca, plasmada em paradas e respostas que ainda hoje provocam o riso.
Dir-se-á que haveria, no âmbito da literatura vila-realense, coisas mais sérias para editar. Mas eu entendo que é muito séria esta atenção a uma idiossincrasia das gentes de Vila Real, que, bem ou mal, moldou a sua identidade cultural, logo ajudou a moldar a comunidade. É afinal a “petite histoire” e os seus protagonistas que estão em jogo. Nem tudo no passado de Vila Real podem ser glórias militares e lances dramáticos. Há que olhar também para o lado humilde da história. E estarmos gratos ao Dr. Joaquim de Azevedo – perdão, a Lotelim – por ter celebrado, no longínquo ano de 1940, a Vila Real boémia e galhofeira de outrora que entretanto – helás! – se perdeu pelo caminho.

A. M. Pires Cabral

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Mão amiga e ocupada em consultas sistemáticas ao Vilarealense, de que recentemente a Câmara Municipal de Vila Real em boa hora adquiriu uma colecção quase completa, fez-me chegar um texto que ali encontrou e lhe deu no goto.
Transcrevo, actualizando a grafia e arriscando uma ou outra correcção que me parece conveniente (e perdoem-me, se erro):

CAMILO CASTELO BRANCO

O eminente romancista Camilo Castelo Branco escreveu o seguinte num jornal da província, sob a epígrafe – Os dois retratos.
«O retrato que me fizeram há 30 anos está ali, ao lado do que ontem me fizeram aos 60 anos. Estão espantados um do outro. O velho diz ao rapaz:
– Eu já fui o que tu és.
O rapaz diz ao velho:
– Bem sei. Estou aqui para te punir pela vangloria com que então te retrataste nesta postura soberba de força, de saúde, com um sobrecenho petulante. Contempla-me, velho, e se não és tão miserável que chores, lê a “Velhice” de Cícero, e verás que a Providência Divina até nas margens da sepultura faz vicejar as flores. Tens sobre mim grande vantagem. Eu tinha que tragar o cálix de 30 anos de desgraças. Tu cumpriste a sentença e vais enfim descansar.»

Aqui fica este naco de filosofia estribada em Cícero e bem ao jeito de um Camilo cada vez mais enfermiço com a idade e cada vez mais enamorado da morte como libertação e repouso. O que não impede que seja possível detectar no escrito subtis harmónicas de angústia pela inevitabilidade da própria morte que apetece. E este diálogo de pulsões antagónicas – morte desejada mas temida, ou temida mas desejada – é um dos mais fecundos filões da prosa e da poesia camiliana.

A. M. Pires Cabral

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Todos sabemos que Camilo Castelo Branco era mauzinho. Ainda que os seus rancores se fossem diluindo com o tempo, era impulsivo e nada dado a oferecer a outra face. Ninguém lhas fazia que não lhas pagasse. E com língua de palmo – na arrepiante imagem que se usa em casos que tais em Trás-os-Montes. Por algum motivo era temido como polemista formidável, perito e useiro e vezeiro em toda a casta de golpes, baixos se preciso fosse, para derrotar os que o enfrentavam. Mesmo quando não tinha razão – e muitas vezes não a tinha –, levava de vencida os opositores, derrotando-os pela irrisão impiedosa quando o não podia fazer pelas ideias em si mesmas.
Vejamos um exemplo.
Publicou Camilo em 1879 o Cancioneiro Alegre de Poetas Portugueses e Brasileiros. É uma antologia comentada, em que o antologiador, caturra, se mostra geralmente pouco simpático para com os poetas novos, principalmente os brasileiros.
As reacções não se fazem esperar. Artur Barreiros, um brasileiro indignado, publica uma carta no Rio de Janeiro, em que diz ter uma bengala com que castigará Camilo. Como se uma simples bengala pudesse rivalizar com o estadulho camiliano...
Tomás Filho, poeta carioca, aliás estimável, sai também a terreiro com um opúsculo de oito páginas em desafronta dos poetas brasileiros, em termos nem sempre elegantes. Tal não fizesse. Camilo, que não gostava que lhe pisassem os calos, mesmo aqueles a quem ele os tinha pisado primeiro, achincalha-o cruelmente na segunda edição do Cancioneiro.
Principia deste jeito: “Tomás Filho! Começa logo por mentir no apelido. Filho! Quer-me parecer que ele não tem pai. E, se o teve anónimo e hipotético, Gil Vicente, António Prestes e Jorge Ferreira de Vasconcelos são quem amiúde lhe dizem o nome da mãe.”
Segue-se uma saraivada de bordoadas, qual delas a mais sonora no costelame do pobre poeta brasileiro. Levado no seu crescendo de chacota, Camilo acaba por fechar o artiguelho assim, sem tirar nem pôr: “Depois disto, Tomás Filho deputa e delega na bengala de Artur [Barreiros] a sua desforra.” Sublinhado nosso. Consta que Tomás Filho ficou acabrunhado para o resto dos seus dias.
Era mesmo mauzinho, o velho patriarca das letras portuguesas.

A. M. Pires Cabral

Quem deita um livro ao mundo é como se deitasse um filho: ninguém sabe o destino que terá. Já contei algures como muitos exemplares do meu livro de estreia, Algures a Nordeste, acabaram ingloriamente os seus dias como acendalhas para a lareira. E viva o velho se não tiveram destino ainda mais impróprio… Que isto de papéis, numa casa rústica, têm serventias que não lembram ao diabo.
Vem tudo isto a propósito de Fausto José, o poeta de Armamar (onde preferem chamar-lhe o poeta de Portugal). Vi no catálogo dum alfarrabista um exemplar de Síntese, de 1934, o seu quarto livro de poesia e um daqueles em que é mais visível o seu fervor nacionalista e a sua propensão para a lírica popular, e pensei que não era tarde nem era cedo: tratei de o mandar vir (por 32 euros e meio) para o Grémio Literário Vila-Realense, que, em matéria de Fausto José, só dispunha dos dois grossos volumes da sua obra completa, em boa hora editados em 1999 pela Câmara Municipal de Armamar, que têm às vezes as suas pequenas falhas de revisão.
Chegado o livro, depara-se-me na primeira página uma dedicatória: «Ao Engenheiro Fulano de Tal [omito naturalmente o nome] of. o amigo que muito o considera, Fausto José».
Não sei quem fosse este engenheiro que o poeta tanto considerava. Não deve ter deixado grande rasto público, pois o próprio Google, onde qualquer zé-ninguém aparece e faz figura, guarda sobre ele um silêncio sepulcral. O que sei é que a consideração não devia ser recíproca, pois – verifiquei logo em seguida – o tal sujeito nem sequer se tinha dado ao trabalho de abrir o livro. Abrir no sentido de, com uma faca ou canivete, individualizar as folhas que estavam ainda agrupadas quatro a quatro, conforme tinham sido dobradas na tipografia. Imagino a cena: o engenheiro a receber o livro e acto contínuo, com um bocejo, dizer: «Bah! Coisas de poetas…» e a colocá-lo enjoado na estante, enquanto pensava em cambotas, parafusos e outras coisas realmente úteis.
Enquanto abria carinhosamente o livro, com a minha navalhinha de Palaçoulo, não pude deixar de pensar, desanimado: a quem oferecemos os nossos livros…

10 de Julho de 2008

A. M. Pires Cabral