Uma ficção picaresca em torno da vida do primeiro gramático português
José Mário Silva
in “Actual”, Expresso, 20 de Agosto de 2011
Na abertura deste romance, Ernesto Rodrigues recorre a um dos mais antigos estratagemas ficcionais: a descoberta de um manuscrito perdido que lança nova luz sobre uma determinada figura histórica. Neste caso, o foco recai sobre Fernando de Oliveira, autor da primeira “Grammatica da Lingoagem Portuguesa” (1536). Em jeito de preâmbulo, assistimos ao encontro entre um professor de português da Universidade de Budapeste e uma aluna húngara que prepara dissertação sobre João de Barros. Nas suas investigações, a jovem recupera um documento, dobrado em 16 partes, escrito por diferentes mãos, tanto na frente como no verso. Os dois textos, autónomos, causam no professor “admiração, inveja limpa, euforia”, na medida em que revelam uma inesperada qualidade romanesca, antecipando “algumas propostas da ficção seiscentista e ulterior”.
O primeiro “livro” consiste numa estranha narrativa, passada na ilha de Bled (atual Eslovénia), em setembro de 1532, quando os turcos voltam a ameaçar a Europa. Enviado pelo Papa, Fernando de Oliveira chega a um mosteiro de frades desconfiadíssimos, numa missão pouco clara, até para ele próprio. Apresentando-se como censor de livros, tenciona vigiar aquela comunidade fechada e hostil, mas é ele que acaba vigiado.
A ilha surge como um espaço opressivo, longe do mundo, onde se infiltra, por entre as neblinas, uma espécie de irrealidade. Oliveira assiste a crimes horrendos, fugas, conspirações, diatribes teológicas e até a um bizarro “concurso europeu Cristo do Ano”, com qualquer coisa de reality show. Há ainda uma biblioteca gótica vazia (gémea siamesa de uma igreja) e um labirinto vegetal onde Oliveira intui princípios de uma “gramática da natureza”. Sendo um “homem de sentidos”, ele tem muitas dúvidas quanto à sua capacidade de resistência ao pecado, acabando por cair em tentação. Ao envolver-se num festim carnal com uma Judite de contornos míticos, o “discurso em romance”, barroco e picaresco, torna-se ainda mais difuso e inverosímil — pelo que não espanta o parecer final do frade que proíbe a obra, alegando que ela contém “muita coisa desonesta, e mal soante, alguma escandalosa e contrária à f é e bons costumes”.
O segundo “livro”, escrito no verso do primeiro, é supostamente obra do dito dominicano censor, inimigo que acompanhou como uma sombra toda a vida de Fernando, agora narrada em fragmentos (sete passos e uma “queda”). Mais do que o percurso de uma “figura indecisa” e fugidia, “mudando conforme o olhar” que sobre ele incide, importa aqui o cenário em que Oliveira se move: esse século “de ouro sombrio”, atravessado por “sismos e pestes, pirataria, perdas do rei e da nação, império ao deus-dará”, mais o Santo Ofício e seus julgamentos sumários.
Ernesto Rodrigues constrói “O Romance do Gramático” como um labirinto em que a autoria dos textos é incerta, bem como a verdade do que neles se conta. Mas o que lhe interessa, para lá das contingências ficcionais, é o retrato de um país à beira do declínio, triste sina que se prolongou até hoje. Isso e o elogio do amor (em jogo de espelhos que atravessa os séculos). Isso e o prazer da escrita, dando corpo ao “luxo de falarmos esta língua”.
Ficção - Autofagia
O Porco de Erimanto
A.M. Pires Cabral
Cotovia
Pedro Mexia
Nove fábulas sobre a doença e a mortalidade, e uma alegoria monstruosa.
Um autodidacta torna-se historiador emérito. Mas a História é um domínio demasiado vasto. Especializa-se então na História da civilização grega. Depois, em mitologia grega. Depois, mais especificamente, nos trabalhos de Hércules. E destes, especializa-se na questão do javali de Erimanto. Tem uma sede de conhecimento insaciável, uma febre da especialização indomável. Em consequência disso, o homem que sabe tudo sobre o javali de Erimanto vai-se tornando num javali. O processo de "suinificação", com todos os horrores de uma metamorfose, é a apoteose do conhecimento. Transforma-se o amador na coisa amada, e o espectáculo é deprimente.
Esta é a mais sintética fábula de "O Porco de Erimanto", colectânea de dez contos de A.M. Pires Cabral. Autor prolífico, a sua actividade de contista foi mais produtiva em meados dos anos 80, com "O Diabo Veio ao Enterro", "Memórias de Caça" e "O Homem que Vendeu a Cabeça"; "O Porco de Erimanto" é uma versão revista e aumentada deste último título. São dez as fábulas, geralmente de cunho fantástico, algumas divertidas, outras francamente assustadoras.
Há um funcionário com fumos de poeta, alojado numa pensão estadonovista, que vê a sua sanidade mental em perigo por causa de um misterioso buraco na parede. Um homem que vende a cabeça à ciência. Outro que luta com a sua sombra. Um desgraçado que ultrapassa um desgosto amoroso com ataques de incontinência urinária. Pires Cabral confunde de propósito a fisiologia e a psicologia, de modo que nunca sabemos o que é natural ou patológico, o que é absurdo ou lógico. Alguns destes sujeitos são vítimas de partidas, outros nasceram sob estrela funesta, mas todos vivem em constante angústia.
Duas ou três histórias têm um cunho mais divertido, como aquela em que o director de uma escola se arroga o direito de inspecções sanitárias intrusivas, numa sátira à ditadura e aos legalismos burocráticos em geral. Mas outros momentos são de puro terror. Não deve haver em português nenhum texto sobre o cancro tão perturbador como "Desidério". Tudo começa com a descoberta de um quisto nas costas do protagonista. Mas aquele sinal, uma excrescência que podia ser rapidamente removida, vai ficando, vai dominando a vida do seu portador, que com ele cria uma relação íntima, umbilical, quase de ternura. Pires Cabral chama ao cancro uma "autofagia", porque é uma doença que nos consome por dentro. E depois descreve em detalhe esses medos e devastações. Não são páginas sentimentais. É uma monstruosa alegoria que lembra Ballard: "É então fabricada uma réplica exacta de cada autófago, de material sintético, que não só é perfeitamente comestível como reproduz o sabor da carne humana e contém um alto teor proteínico. Tais réplicas são colocadas à disposição de cada doente, nos seus aposentos. E então os doentes vão-nas consumindo à medida dos seus impulsos". E continua: "Fala-se de certos efeitos secundários desagradáveis, entre os quais a tendência para uma progressiva transformação da autofagia em antropofagia. Mas nada se provou ainda. E os autófagos ricos podem devorar-se em efígie (...)" (p. 196).
Em todos estes contos há intimações de mortalidade, vistas com uma frieza sarcástica mas não despojada de humanidade; mas, com "Desidério", A.M. Pires Cabral escreveu uma aterradora transposição da mais inominável das doenças contemporâneas, a mais activa forma actual da nossa finitude. O caranguejo trespassado por uma lança é a imagem que abre as portas ao delírio imaginativo, à fábula pavorosa, à doença como condição humana essencial: "Cada qual deve acalentar dentro de si uma doença. Mens sana in corpore sano - para quê?!... Devemos é ter dentro de nós um relógio que nos lembre periodicamente quia pluvius sumus, que temos tributos a pagar à mecânica da carne. E que cada um pague na moeda de que dispuser. (...) Por isso eu digo: a cada um sua moléstia" (p. 178). Não é só a escrita impecável que nos agarra nestas fábulas: é não podermos fingir que não é nada connosco.
O título “passagens e afectos” sugere o fluir temporal, e até espacial, ligado pela coordenativa copulativa “e” aos afectos, o que, numa leitura global, depreende que “as passagens” suscitam novos sentimentos. Disso mesmo dá conta o sujeito poético, pois, desde o acto da sua concepção: “que fui em campo aberto” (pág. 25), marcando o seu nascimento: “E tudo aflito,/ À espera do meu primeiro grito” (pág. 27), tudo ficou registado no tempo até ao final da obra, reaparecendo sob a forma de um “eu” maduro, agarrado às memórias.
Este livro fornece-nos o percurso de um homem escondido por do detrás sujeito poético e não seriam necessárias as notas complementares para o leitor captar o sofrimento e a dor vividas em primeira pessoa, pois a poesia, embora depure sentimentos, é também o palco privilegiado para os plasmar. No poema “Um outro Adeus ao Mar” a interrogação final dos versos: “Te pedi em oração/ Que levasses meu ofertório/ Ao concílio dos deuses,/ Para que protegessem os filhos meus?” revela já abandono do sujeito por parte do Mar, esse mesmo “eu” que o escolhera para confidente e agora, desiludido, reitera: “Toma então/ o pesar verdadeiro, / De quem te quis dar/ Um filho marinheiro,/ Antes da morte o levar.” (pág. 53). Certamente que este filho é o símbolo de tantos outros anónimos que partiram, como, aliás, Fernando Pessoa evocou: “Quantas noivas ficaram por casar/ Para que fosses nosso, ó mar!”. Mas a verdade é que a Dedicatória contempla, em primeiro lugar, a “memória do meu filho”. São estas e, certamente, outras passagens que geram novos afectos que estão concentrados neste título, pois a construção da obra assinala várias etapas, espécie de capítulos muito abrangentes, em que o humano, a natureza e o divino se fundem, como podemos observar no poema “Ausência” onde a ave surge como mensageira da felicidade na terra: “Porque as aves são criaturas místicas, / Com asas celestiais, que Deus criou,/ Para alegrarem a Terra e o Céu” (pág. 68).
Estes poemas são simples, mas portadores de uma enorme sensibilidade e de um amor intrínseco à memória dos lugares e das coisas. O Douro serpenteado suspenso: “Era ali o meu Douro” (pág. 109); o Mar com os seus mistérios: “O Mar!/ - O que é o Mar, avô?” (pág. 45); as conversas com os avós, papel hoje já assumido pelos ex-filhos: “Que haja em casa uma avó querida, / Capaz de criar os três!” (pág.116); a Terra estreitamente ligada à função materna: “Por isso é a ti, Mãe-Terra / Berço da terrena criação/ Que faço solene pedido.” (pág.91); a Água como fonte essencial da vida: “E sem água/ O sangue da Terra/ Não existirá vida.” (pág. 93), e associada à chuva: “Chuva, filha predilecta do Mar.” (pág. 95), ao granizo: “O granizo era como balas/ De guerreiros de pedra.” (pág. 96), e à neve: “que coisa tão bela,/ Era a neve a dançar” (pág. 97).
Os elementos da Natureza citados formam campos lexicais muito mais vastos que adornam a poesia, enquanto protagonistas dos cenários envolventes: assim, junto ao mar, temos as ondas, as sereias, os marinheiros e as praias; na terra, ou nas serranias, encontramos uma vegetação rica com flores campestres e silvestres que, por vezes, acolhem os grilos e as formigas e atraem outros insectos alados, tais como as abelhas, as borboletas e as mariposas. E destes versos sobressai ainda o belo cromático dos amores-perfeitos ou do jasmim que se associam a uma enorme colecção de aves: o melro, o pardal, o pintassilgo, o tentilhão, a carriça, a rola. O mesmo olhar analítico e perspicaz de coleccionador devotado a escolher os melhores versos para a sua colectânea: versos, produto de experiência e de sabedoria calcinada pelos tempos e pelos espaços mundividenciais que cercaram o sujeito de enunciação; versos de amor e de gritos... versos que transformaram um homem de armas em poeta. Porque, apesar do “se” presente nos versos: “Ah se eu fosse poeta, / Minha mãe” (pág. 29), o sujeito revela-se sem hesitações e afirma-se como um grande poeta; talvez tenha sido a vida que o prendeu à magia das palavras e, por elas, tenha conquistado o sentido do belo e o êxtase contemplativo do universo, segredos muito bem guardados, mas também desvendados por Sophia de Mello.
Este livro, na sua simplicidade, reúne reminiscências de poetas de todos tempos: desde Antero de Quental, Augusto Gil, Cesário Verde até Sophia de Mello e, como não poderia deixar esquecido, seu conterrâneo Torga. De uns, o poeta colheu o colorido, de outros, o jeito de fazer versos, de outros, a inspiração, e de Torga a veia telúrica que fez de Trás-os-Montes uma terra singular.
A relação existente entre o “eu” e o “tu”, por vezes personificado, bem como o tom confessional e o discurso dialógico impregnam a poesia de ritmos e toadas disfóricas, de acordo com a intencionalidade comunicativa subjacente.
São poemas feitos das memórias que acompanharam o crescimento do ser e souberam esperar pela hora de nascer, através da palavra - o arco-íris, a presença dos avós, as paisagens, os lugares -, são imagens presentificadas a preencher o caminho percorrido e a assinalar o que ficou por aprender: “E interrogo o espaço percorrido, / Mas ele não me sabe responder./ Porque no tempo fui consumido, / E com tanta coisa por aprender!” (pág. 108).
Esta partilha de memórias com o leitor é, sem dúvida, um gesto de amor e de coragem que João Rodrigues decidiu assumir... e cada um saberá receber, consoante a sua entrega. Afinal, todos estamos expostos às passagens e aos afectos!
Júlia Serra
(Professora e crítica literária)
In Jornal dos Poetas e Trovadores, n.º 50, Outubro/Dezembro 2009, 3.ª Serie, Ano XXIX.
Donzília Martins, natural de Murça, é uma autora cuja produção literária foi dada a público quase na totalidade na primeira década do séc. XXI. Apenas o primeiro livro, em poesia, com o título Lágrimas e Sorrisos em Sonhos de Vida, é de 1991. Os dois seguintes, Lírios Do Campo e Quando o teu Olhar, também em poesia, já são respectivamente de 2004 e de 2006.
Em 2007 publicou a sua primeira obra em prosa, com o título Um país na Janela do meu Nome, com a qual, através das histórias que conta relacionadas com momentos da sua infância passada na área geográfica de Murça, contribui para a preservação da memória cultural de Trás-os-Montes dos anos cinquenta e sessenta do século XX. Um país na Janela do meu Nome é um livro que resulta de uma memória que se vai construindo. É como uma caixinha de música que, ao abrir-se nos delicia com sons da nossa infância, só que esta caixinha é mágica e, em vez de nos dar apenas sons, dá-nos também imagens, cheiros, sabores de um tempo e de um espaço trasmontano. Nele o leitor encontra vivências que a Autora pretende fazer crer “sem utopias nem ficção”, considerando-o “um livro de memórias, de vivências”, “um livro branco onde abriu e estendeu a alma” (Martins 2007: 14), como há já algum tempo escrevemos (Monteiro 2008: 101-108).
Os dois últimos livros que Donzília Martins publicou são de literatura infanto-juvenil e têm por título História do Zé Luís, o menino petiz, de 2008, e Sonhos de Encantar, publicado em 2009. É dele que vamos falar com mais detalhe:
Donzília Martins no “Prefácio” afirma “Só há pouco tempo descobri a magia que é sonhar contos do imaginário com crianças” e essa possibilidade resulta sobretudo do facto de ser avó e de se ter aposentado. Assim, tem agora mais tempo disponível para se ver “transportada para o tempo tempo em que, à lareira, ouvia as lindas histórias de encantar”.
Antigamente, sem televisão, sem computador, sem as actividades e as condições de vida que hoje as crianças têm, o tempo em família era muitas vezes ocupado à lareira, em ambiente comunitário e de aconchego. O tempo e o espaço eram propícios ao relato de contos tradicionais e de histórias do quotidiano. Mas havia também os serões comunitários que Miguel Torga, alterónimo1 de Adolfo Rocha, apresenta no conto «Abre-te, Sésamo», no qual nos aparecem “as mulheres a fiar, a dobar ou a fazer meia, os homens a fumar e a conversar, e a canalhada a dormitar ou nas diabruras do costume” (Torga 1988:101). Mas, quando chegava “a hora do Raul ler as histórias do seu grande livro, todos arrebita[va]m a orelha”. As pessoas da aldeia reuniam-se numa “loja de gado, ao quente bafo animal” e “todos os moradores se cotizavam para pagar a luz do carboneto ou de petróleo e o serão começava” (Torga 1988: 102). Como escreve aquele autor trasmontano, natural de S. Martinho de Anta, “é no Inverno, nas grandes noites sem-fim, que se goza na aldeia essa fraternidade” (Torga 1988: 102). Nos anos quarenta do século passado, era assim em algumas aldeias. Hoje, no séc. XXI, os serões são bem diferentes, na maior parte das vezes mais solitários, em que cada um se ocupa a estudar, a ver televisão ou com os telemóveis, os jogos de computador, a Internet.
Em Sonhos de Encantar, Donzília Martins refere que tem a preocupação de reinventar os sonhos que os contos tradicionais faziam surgir e também a cultura popular que foi a sua escola para a vida, até porque, como escreve no mesmo “Prefácio”:
“É dessa cultura popular que vim e da qual me orgulho. Foi ela a minha escola para a vida. Por isso quero dar o meu testemunho às crianças, a fim de que também elas no seu imaginário possam sonhar e serem mais felizes.” (Martins 2009: 4)
Essa escola da vida já o leitor a conhece de uma obra que a Autora escreveu anteriormente, Um País na Janela do meu Nome, e é ela que leva a que uma menina diga que vale mais estudar do que ter dinheiro. Falamos do conto «A caixinha mágica», no qual encontramos uma lição de vida que é dada pela menina, para quem estudar era mais importante do que as moedas, porque “o dinheiro gasta-se e a sabedoria fica” (Martins 2007: 25). Ao preferir a sabedoria ao dinheiro, a adolescente revela a sua prioridade, porque com sabedoria poderia ter um melhor trabalho mais tarde. Assim, o dinheiro que a avó queria deixar-lhe após a morte, foi utilizado para pagar os estudos e realizar o seu sonho. O sonho da menina do conto «A caixinha mágica» tornou-se realidade na história de Donzília Martins, mas nesse tempo nem sempre assim acontecia, como muito bem o demonstrou o escritor duriense Soeiro Pereira Gomes (cujo centenário do nascimento ocorreu em 14/04/2009 e que aqui homenageamos de forma singela). Na sua obra Esteiros, Soeiro Pereira Gomes deu a conhecer a exploração do trabalho infantil e a desigualdade de oportunidades no Portugal dos finais da década de trinta, princípios da de quarenta do séc. XX.
Em Sonhos de Encantar Donzília Martins refere que tem a preocupação de apresentar ao leitor “textos mais didácticos e reais do que lúdicos ou ficcionais” (Martins 2009: 4), contudo a fórmula encantatória com que abre as histórias “Era uma vez...” transporta logo o leitor para o mundo mágico da ficção intemporal. Existe também um apelo à imaginação de quem lê o livro, procurando-se desenvolver a criatividade infantil. E isso é feito de maneira natural, quando no fim de cada uma das histórias encontramos expressões como:
“Agora conta tu...” (Martins 2009: 9);
“Entra. Vem, para ficares a saber.” (Martins 2009: 15);
“Queres vir também? Anda. Sobe.” (Martins 2009: 22);
“Também tens uma cãozinho? Fala-nos dele. Se não tens e gostavas de ter, imagina que tens um...” (Martins 2009: 28).
Mas vejamos mais de perto cada uma das histórias. A primeira, «A menina que aprendeu com o olhar», estabelece um contraste entre uma menina que não gostava de comer a sopa e um menino que não tinha sopa para comer. O problema da fome e da desigualdade social é abordado com simplicidade, acabando a menina por compreender a diferença de condições de vida. E assim, a partir daí, “nunca mais deixou ficar a sopa arrefecida, ou a merenda da escola (...) na pasta esquecida” (Martins 2009: 9).
Na história «No Jardim do Alfabeto» fala-se de um jardim “muito verde, muito especial, muito engraçado” que ficava perto de uma escola. Esse jardim era especial porque em vez de flores os meninos viam nascer letras de muitas cores, tamanhos e formas. É uma história que, de forma, lúdica e divertida, pretende chamar a atenção das crianças para o facto de as letras poderem formar palavras quando bem agrupadas. Tudo é feito naturalmente:
“Um dia, andando a passear por entre elas uma abelha e uma borboleta, ambas deliciadas com tão doce perfume e tamanha beleza, pediram às letras que se juntassem no meio do jardim para fazerem um baile de roda.” (Martins 2009: 10-11)
E, ao juntarem-se, as letras formavam palavras, surgindo uma série delas com cada uma das letras do alfabeto.
A experiência docente com crianças que a Autora possui permite-lhe fazer uma espécie de aula onde, de maneira lúdica, os meninos podem ver palavras iniciadas com cada uma das letras do alfabeto. A essas, mais tarde, juntam-se outras começadas pela mesma letra e, ordenadas, acabam por viverem “felizes para sempre no DICIONÁRIO” (Martins 2009: 15). Donzília Martins, de forma alegre e divertida, usando a imaginação que lhe permite criar histórias, ensina aos meninos o abecedário e o que é um dicionário, um livro para onde “todas as letras, ordenadas, cada uma no seu lugar e a seu tempo, puderam entrar” (Martins 2009:15). No final, há um apelo ao pequeno ouvinte/leitor: “Entra. Vem, para ficares a saber” (Martins 2009:15).
Um dos temas do livro é a morte, um tema pouco usual para crianças, e que aparece tratado com alguma poesia, idealismo, apelando à imaginação, em contos como «A gatinha Kokas», «O Flash» e «A morte é uma flor (Filosofia para crianças)».
No primeiro, depois de a gata Kokas ter morrido, a Mariana, de oito anos, tem esperança de voltar a vê-la, uma vez que dizem que os gatos têm sete vidas. Então:
“E como por magia, uma nuvem branca, que ia a voar nas costas do vento, acenou-lhe.
– Não me reconheces? Sou a Kokas. Vou andar sempre aqui em cima a passear. Quando te apetecer brincar comigo basta olhares e sonhar. Aqui posso transformar-me em tudo o que tu imaginares: fada, príncipe, castelo, rio, ponte, livro, amigos, escola, jardins floridos, o pôr-do-sol, comboios a correr, tudo o que quiseres. Sobe nesse raio de sol e vem brincar.
A menina, embalada, subiu por um fio de cabelo de oiro que o sol estendeu e foi brincar com a sua linda gatinha de olhos cor de mar e céu...” (Martins 2009: 22)
Sugestivamente, encontramos a pergunta: “Queres vir também? Anda. Sobe.” E é assim que termina o conto, com este apelo à imaginação das crianças, tal como sucede com a história do cão Flash, um pastor alemão que dá o título ao conto.
Em «O Flash» temos a Catarina que, “sentada no baloiço, entretanto adormecera e sonhava! Então entrámos todos no sonho dela e vimos o Flash com umas asas, que um anjo lhe emprestara, a voar, a voar, a voar, a voar...” (Martins 2009: 28).
E a história termina com um convite ao leitor para falar de um cão, seja ele real seja imaginário:
“Nas asas do Flash, feito vento, todos subiram. A brisa serena beijava os rostos dos meninos que sorriam, sorriam, sorriam...
Também tens um cãozinho?
Fala-nos dele. Se não tens e gostavas de ter, imagina que tens um...” (Martins 2009: 28)
Nas páginas 29-36 temos a história «Na caixinha da Biblioteca», na qual se fala de uma “menina ‘Grande’” que entra na Biblioteca de Guimarães. É uma projecção da Autora que, com um grupo de colegas está a festejar os 44 anos do Curso do Magistério e vai ver um filme no edifício da Biblioteca de Guimarães.
A “menina ‘Grande’”, ao ver o filme, recordou-se da sua meninice, junto dos avós. “Como por magia” e atraído pelo sonho de a menina ter um exemplar da sua autoria no conjunto dos livros do Plano Nacional de Leitura, um livro poisou-lhe no colo e deu-lhe a esperança de um dia poder ver um livro seu naquele conjunto: “Ainda um dia hás-de dar-me um irmão por companhia” (Martins 2009: 33). E, mais adiante:
“Também tu terás a tua fada boa a tocar com a sua varinha mágica na tua mão, porque no teu coração ela já tocou. (...) Ainda não chegou a tua hora. Não desesperes e nunca desistas. Caminha. É com pequenos passos que se fazem os caminhos.” (Martins 2009: 35)
Com esta mensagem para a personagem, Donzília Martins torna mais abrangente o conselho, fazendo com que se aplique a todos, deixando-nos um incentivo para uma caminhada gradual no sentido de alcançarmos os ideais almejados.
A história termina com a “menina ‘Grande’” a descer as escadas e então, “como por magia, transformou-se em livro!!! “Sonhos de Encantar”... com sete histórias para imaginar!...” (Martins 2009: 36). É um livro em que duas crianças querem pegar, um livro desconhecido para a bibliotecária, mas que elas dizem que fala e salta, porque o viram a descer as escadas.
Esta história e as duas seguintes «Aliz no País dos sonhos» e «A morte é uma flor» (Filosofia para crianças» são as únicas em que não existe o apelo final ao leitor.
Em «Aliz no País dos sonhos» Donzília Martins retoma o género de histórias de Um país na Janela do meu Nome, na medida em que evoca cenas da infância passadas na província, numa aldeia de gente “sofrida e pobre que vive escondida e perdida no meio das fragas, por entre as montanhas...” (Martins 2009: 40).
Nesta história aparece-nos a personagem Aliz, anagrama de Zila, forma abreviada de Donzília. Esta personagem, que é o alter ego da Autora, vive num meio rural, onde passam poucas pessoas, num tempo em que os colchões ainda eram de palha, numa casa em que sobressai a “lareira da cozinha, que era também sala e para a qual davam os quartos sem portas” onde ainda “brilhavam algumas brasas dos paus grossos de castanheiro que o avô colocara à noite para se aquecerem e e esquentar a pedra que serviria de botija para os pés” (Martins 2009: 38).
É neste ambiente que Aliz vive com os avós, sentindo-se muito só e desejando conhecer tudo o que a avó lhe conta nas historias. Uma das pessoas que passa na rua, uma vez por dia, é a moleira que também se sente só e se queixa do isolamento em que vive, já que o seu único companheiro é o burro, o Jeremias, com quem fala todo o caminho e a entende como ninguém. Esta situação da moleira lembra-nos a do protagonista de O Malhadinhas de Aquilino Ribeiro em que a personagem também trata o animal como um ser humano, ele que é a única companhia nas longas viagens que faz.
E, dado que estamos num conjunto de “Sete histórias para imaginar”, esta é mais uma em que se apela à imaginação e, assim, também surge uma fada. É uma fada flor de pessegueiro que consola a menina, incentivando-a a não se lamentar pela solidão:
“Para se ser feliz basta olhar e ver a beleza das coisas que dançam e passam à nossa volta. Depois, beber toda a poesia que vive nelas...Um dia hei-de levar-te a viajar e a conheceres o mundo, como é teu desejo, e terás muitas escolas com meninos.” (Martins 2009: 42).
A história termina com a menina a ser acordada do sonho pelo barulho do ranger do ferrolho da porta, quando o avô chega, carregado de cogumelos. Enquanto o avô prepara uma refeição com eles, a Aliz vai à varanda e agora “ela era a fada encantada, e aquela varanda a torre do seu castelo de chuva dourado” (Martins 2009: 42).
O livro Sonhos de Encantar termina com a história «A morte é uma flor (Filosofia para crianças)», e nela se fala de uma avozinha. É um texto em que no início se fala, com alguma poesia, das avós:
“A maior parte delas tem os cabelos pintados de branco como a neve e lisos ou grifados a fazer de rios ou de pontes. Por cima das avós brilham duas estrelas que, de vez em quando, descem devagarinho e vão pousar-se-lhes nos olhos. Aí, nascem dois lagos grandes, redondos, umas vezes muito azuis, outras muito verdes, outras cinzentos, a baralharem a luz, mas neles, nas cores, brincam duas contas de azeviche, negras, fundas, onde vivem adormecidas mil histórias. É nesses olhares profundos que muitos meninos, sentados nos seus colos, gostam de mergulhar.” (Martins 2009: 43).
E Donzília Martins escreve, a propósito das lágrimas das avós, que muitas vezes também são de alegria:
“Na cara das nossas avós passam rios naturais, com leitos vincados, por onde de vez em quando correm grandes caudais em cataratas de lágrimas.”
Essas gotinhas de água transparentes são quase sempre de alegria por serem testemunhas vivas das crianças a crescerem.” (Martins 2009: 43).
Em «A morte é uma flor (Filosofia para crianças)» a Autora opta por falar livremente das avós, que são “exímias a ser ‘cadeirinhas’ de colo e que “são eternas! Nunca morrem. Ficam sempre connosco, deixando sempre um pouco delas em todos os passos do nosso caminho e, sobretudo, ficam para sempre a viver nas nossas almas.” (Martins 2009: 46). Nesta última história reflecte-se claramente, por um lado, a relação afectiva muito forte que ligou Donzília Martins à sua avó e, por outro lado, a sua experiência, cheia de entusiasmo, de ser avó no momento presente.
Em conclusão, resta-nos dizer que, em Sonhos de Encantar, Donzília Martins, agora avó e a gostar de contar histórias aos netos, aproveita para nos contar pequenas histórias nas quais mostra de forma suave, idealizada e com alguma poesia, problemas com que as crianças e os adultos são confrontados no dia a dia das suas vidas. No seu livro encontramos páginas de encantar, com mensagens de amor, de fraternidade, de saudade motivada pela ausência eterna, uma saudade que pode ser colmatada ou atenuada através da imaginação.
1Sobre a fundamentação desta designação, veja-se o nosso trabalho Da heteronímia em Eça de Queirós e Fernando Pessoa à alteronímia em Miguel Torga (Série Ensaio, n.º 24, Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2003), divulgado na Internet com o seguinte endereço electrónico:
ttp://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/ensaios.htm#4
Mª da Assunção Morais Monteiro
(Professora Catedrática da UTAD)
Referências bibliográficas:
MARTINS, Donzília (2009): Sonhos de Encantar. Guimarães: Editora Cidade Berço (ISBN: 978-989-8165-22-0).
MARTINS, Donzília (2007): Um País na Janela do meu Nome. Guimarães: Editora Cidade Berço (ISBN: 978-972-8598-88-4).
MONTEIRO, Maria da Assunção (2008): «Trás-os-Montes e Alto Douro em contos/memórias de Donzília Martins». In Revista de Letras II, 7. Vila Real: UTAD: 101-108.
TORGA, Miguel (1988) Novos Contos da Montanha. 14ª edição. Coimbra: Edição do Autor.
In Jornal dos Poetas e Trovadores, n.º 50, Outubro/Dezembro 2009, 3.ª Serie, Ano XXIX
I misteri non sono contrari alla ragione, le sono superiori.
E' un romanzo atipico e anche per questo molto bello quello che A.M. Pires Cabral costruisce cercando di delineare il volto di Francisco Ochoa, il canonico del titolo che, dietro e dentro gli abiti ecclesiali cela più di una vita segreta. Il ritratto, da parte dell'autore e del protagonista, padre Salviano, non è né agevole né consolante perché "spesso la verità è fatta di menzogne ripetute" e il volto di Francisco Ochoa cambia con il variare dei narratori, delle storie, delle leggende fiorite sul suo conto. Lo stesso Salviano ad un certo punto deve fare i conti con la frustrazione e lo sconforto dovuti ai fallimenti delle sue ricerche e dei suoi sforzi: "In effetti mi vedevo sempre più incapace di arrivare alla verità. Le testimonianze che andavo raccogliendo erano così contraddittorie in punti talmente decisivi, i vari informatori divergevano tanto nelle interpretazioni dei medesimi fatti, da farmi credere di ascoltare storie diverse su persone diverse. La verità entrava così nel regno dei desiderata remoti, come qualcosa di sempre più arduo da raggiungere". E' qui che A. M. Pires Cabral trova la brillante intuizione che è al centro del romanzo: la costruzione o la ricostruzione di un'identità, di un personaggio, di una storia potrà trovare zero o infinite corrispondenze con la realtà, ma sarà sempre l'espressione di una verità limitata, nel migliore dei casi. Per padre Salviano la conclusione è anche più drastica, come scrive A. M. Pires Cabral in uno dei passaggi più lirici del romanzo: "E così ho le mani ricolme di schegge di verità ma non so riunirle in una forma riconoscibile, nella verità semplice e chiara, come mi hanno insegnato ad amarla. Non mi resta che fuggire. Giungo alla fine di questa complessa storia senza conoscere la verità, per quanto l'abbia ricercata, per quanta pazienza, ostinazione, perfidia e raziocinio io abbia investito nella sua ricerca. Penso dunque di poter dedurre che la verità non esiste. Semplicemente non esiste. Se mi chiedete se esiste o no, risponderò no". E' così che A. M. Pires Cabral firma un romanzo sensibile, acuto e molto profondo nel centellinare l'inadeguatezza delle storie, la complessità del narrare e la fatica di vivere nel recinto di un'ossessione. Da conservare con cura.
Marco Denti (09-08-2009)