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Uma ficção picaresca em torno da vida do primeiro gramático português

José Mário Silva

in “Actual”, Expresso, 20 de Agosto de 2011

Na abertura deste roman­ce, Ernesto Rodrigues re­corre a um dos mais anti­gos estratagemas ficcionais: a descoberta de um manuscrito perdido que lança nova luz sobre uma determinada figura his­tórica. Neste caso, o foco recai sobre Fernando de Oliveira, autor da primei­ra “Grammatica da Lingoagem Portu­guesa” (1536). Em jeito de preâmbulo, assistimos ao encontro entre um pro­fessor de português da Universidade de Budapeste e uma aluna húngara que prepara dissertação sobre João de Barros. Nas suas investigações, a jo­vem recupera um documento, dobra­do em 16 partes, escrito por diferentes mãos, tanto na frente como no verso. Os dois textos, autónomos, causam no professor “admiração, inveja limpa, euforia”, na medida em que revelam uma inesperada qualidade romanes­ca, antecipando “algumas propostas da ficção seiscentista e ulterior”.

O primeiro “livro” consiste numa estranha narrativa, passada na ilha de Bled (atual Eslovénia), em setembro de 1532, quando os turcos voltam a ameaçar a Europa. Enviado pelo Pa­pa, Fernando de Oliveira chega a um mosteiro de frades desconfiadíssimos, numa missão pouco clara, até para ele próprio. Apresentando-se como cen­sor de livros, tenciona vigiar aquela co­munidade fechada e hostil, mas é ele que acaba vigiado.

A ilha surge como um espaço opres­sivo, longe do mundo, onde se infiltra, por entre as neblinas, uma espécie de irrealidade. Oliveira assiste a crimes horrendos, fugas, conspirações, diatri­bes teológicas e até a um bizarro “concurso europeu Cristo do Ano”, com qualquer coisa de reality show. Há ainda uma biblioteca gótica vazia (gémea siamesa de uma igreja) e um labirinto vegetal onde Oliveira intui princípios de uma “gramática da natureza”. Sen­do um “homem de sentidos”, ele tem muitas dúvidas quanto à sua capacida­de de resistência ao pecado, acabando por cair em tentação. Ao envolver-se num festim carnal com uma Judite de contornos míticos, o “discurso em ro­mance”, barroco e picaresco, torna-se ainda mais difuso e inverosímil — pelo que não espanta o parecer final do fra­de que proíbe a obra, alegando que ela contém “muita coisa desonesta, e mal soante, alguma escandalosa e contrá­ria à f é e bons costumes”.

O segundo “livro”, escrito no verso do primeiro, é supostamente obra do dito dominicano censor, inimigo que acompanhou como uma sombra toda a vida de Fernando, agora narrada em fragmentos (sete passos e uma “que­da”). Mais do que o percurso de uma “figura indecisa” e fugidia, “mudando conforme o olhar” que sobre ele inci­de, importa aqui o cenário em que Oli­veira se move: esse século “de ouro sombrio”, atravessado por “sismos e pestes, pirataria, perdas do rei e da na­ção, império ao deus-dará”, mais o San­to Ofício e seus julgamentos sumários.

Ernesto Rodrigues constrói “O Ro­mance do Gramático” como um labi­rinto em que a autoria dos textos é in­certa, bem como a verdade do que ne­les se conta. Mas o que lhe interessa, para lá das contingências ficcionais, é o retrato de um país à beira do declí­nio, triste sina que se prolongou até hoje. Isso e o elogio do amor (em jogo de espelhos que atravessa os séculos). Isso e o prazer da escrita, dando corpo ao “luxo de falarmos esta língua”.

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